sábado, 11 de dezembro de 2010

OS MENINOS DA RUA XV

AVila - Condorcet


Condorcet Aranha

Como em tantas cidades desse nosso enorme Brasil, também na pequena Aparecida de Branco, existe uma rua XV de Novembro, hoje, uma das principais vias de acesso. Porém, naquela época, há mais de cinqüenta anos, a rua transformava-se em campo de futebol para os meninos que ali residiam, inclusive eu.
As minhas lembranças obrigam-me, constantemente, à visitar aqueles tempos, aonde inocência e liberdade nos levaram a formar uma verdadeira sociedade, diferente das atuais em que os interesses superam a dignidade e a amizade, visando o poder e acúmulo de riquezas. Na nossa sociedade, éramos capazes de enfrentar grandes desafios e guardar os maiores segredos pelo bem do grupo.
A poucos quarteirões da rua XV estava, e ainda está, a Rua da Saudade onde foi instalado o primeiro cemitério do município. Aliás, esta nomenclatura é repetida em centenas de ruas de outras tantas cidades do nosso país.
Um grupo de quinze meninos, com idade entre os 9 e 15 anos, moradores da rua XV, reuniram-se e formaram o que denominaram o Grupo dos 15. Constituído exclusivamente por meninos porque achavam que, as meninas, trariam muitos problemas na execução das tarefas tidas como perigosas. Assim, criaram uma barreira que as impediam de participar de qualquer atividade. Além disso, acreditavam serem elas mais vulneráveis e que, se pressionadas, acabariam por delatar alguns executores dos planos que poriam em prática.
O Grupo dos 15 teve como fundadores os seguintes meninos: Carlos 14 anos, Wagner 11, Gerson 10, Paulo 13, Altamiro 12, Pedro 9, Augusto 12, Renato 13, Bruno 13, Hélio 10, Geraldo 13, Gabriel 14, Alfredo 12, Reginaldo 14 e Breno 12. Por eles foram estabelecidas as normas que regeriam o grupo. Carlos foi escolhido como líder natural devido às suas características de inteligência, vivacidade, rápido raciocínio, somados à sua grande habilidade esportiva e complexão atlética. Só, poderiam participar do grupo, meninos com um mínimo de nove anos e máximo de quinze, quando seriam jubilados na véspera de completarem os 16 anos. Para ingresso no grupo prestavam juramento quanto à guarda dos segredos e de todas as atividades, até o fim de suas vidas. Passavam, também, pela “prova de fogo” e recebiam a marca dos 15, que constava de um pequeno carimbo em ferro com este número, com aproximadamente dois centímetros de diâmetro que após ser aquecido no fogo, era gravado na porção superior e frontal da coxa esquerda. Este ritual foi exclusivo para os 15 fundadores. De acordo com a idade eram devidamente preparados. Assim, desde os oito anos os meninos que ingressariam no grupo e, a partir dos quinze, aqueles que seriam jubilados mereciam orientação específica. Todos eram subjugados a testes de capacidade e resistência em situações adversas, para manutenção dos segredos.
Criaram um time de futebol, o XV de Novembro Futebol Clube, cujos atletas eram os componentes do grupo. Disputavam o campeonato com os demais times de rua dos bairros vizinhos. Também, as atividades escolares, brincadeiras ou tarefas, eram compartilhadas exclusivamente entre eles. Assim, os meninos da rua XV, formaram uma mentalidade exclusivista que gerou marcas, muito fortes, em suas personalidades. Se, fez deles jovens inteligentes, hábeis e destemidos, também os tornou arrogantes, excessivamente confiantes e totalitários, tomando posições radicais, pois, não aceitavam opiniões nem sugestões dos meninos estranhos ao grupo. Tanto que, dos fundadores, dois se tornaram políticos e marcaram as suas ações como intransigentes, antipáticos aos seus próprios eleitores. Foram eles o Paulo e o Gabriel.
Paulo foi secretário de governo e acabou por desviar somas enormes que eram destinadas à saúde, para aquisição de bens particulares, bens esses que colocou em nome de diversos dos seus familiares. Quanto ao Gabriel, que foi mais longe, alcançando um governo de Estado, formou quadrilhas que se dispunham, a qualquer preço, a defender todos os seus bens, indevidamente adquiridos, quer por irregularidades ou por pressão e atemorização de seus ex-donos. Foi o mandante de vários assassinatos contra pessoas de bem e acabou denunciado, julgado e finalmente encarcerado. Até quando não sabemos, pois a justiça em nossas bandas ainda está muito fraquinha e complacente com certos crimes.
Pois é, o tempo nos transformou em adultos e, cada um seguiu seu rumo. Wagner e Gerson são promotores públicos e responsáveis pelas denúncias e apreensão de documentos que levaram Paulo e Gabriel para a cadeia.
Bruno e Breno tornaram-se cantores e formaram uma dupla sertaneja de grande sucesso e vivem na mídia escrita e televisiva.
Altamiro e Carlos estão formados em Odontologia, e têm seus consultórios dentários em bairros nobres da cidade.
Augusto e Hélio optaram pela medicina. Augusto trabalha como clínico geral num hospital público e Hélio é cirurgião plástico em uma das mais renomadas clínicas da cidade.
Renato e Geraldo são engenheiros-civis e funcionários da Secretaria de Obras do Município, enquanto Reginaldo e Alfredo fixaram-se como comerciantes e mantêm uma cadeia de lojas no shopping da cidade.
Portanto, quase todos nasceram, cresceram e se fixaram em Aparecida Branca, participando diretamente do desenvolvimento e progresso da cidade, não fosse o desaparecimento de Pedro, o caçula do grupo de fundadores do Grupo dos XV. Já, quando criança, seu comportamento introvertido e de poucas palavras, preocupavam os demais porque não lhes inspirava muita confiança. Ainda mais que era um garoto pequeno e franzino. Porém, ele jamais os decepcionou, cumprindo rigorosamente todas as tarefas que lhe foram solicitadas.
Mas, a vida passa e cada vez que as flores desabrocham exibindo uma nova primavera, diminuem as chances de vermos raiar um novo dia e, para os meninos da Rua XV não era diferente. Pois todos os anos reuniam o Grupo dos XV, quando conversavam sobre a infância,
a adolescência e todas as suas travessuras. E agora viam suas faces adquirirem algumas rugas, barrigas que se formavam após o casamento, cuidados com os filhos observando-os diariamente, problemas no trabalho, além de assuntos particulares. Porém não perderam suas arrogâncias, machismo e até mesmo seus comportamentos autoritários, tanto que nessas reuniões sempre faziam brincadeiras em torno do “Corcunda de Notre Dame”, apelido que impuseram ao pároco de Aparecida de Branco. O Padre acabou ficando com esse cognome e assim era chamado por todos os habitantes da cidade. Como bom religioso jamais se importou com o apelido e recebeu-o com naturalidade porque tinha consciência do seu rosto deformado e sua calunga, devidos a um acidente que sofrera ainda muito jovem, quando a casa em que morava com seus pais, ardeu em chamas. Inclusive devido a este acidente é que resolveu definitivamente, ir para o seminário e se dedicar à religião. Era um padre dedicadíssimo e respeitado por todos quantos dele precisaram, além de que fazia campanhas para arrecadar roupas e alimentos para os necessitados e visitava diariamente, orfanatos e a casa dos idosos, deixando-lhes tudo que arrecadava das contribuições dos adeptos, retirando exclusivamente o indispensável para a manutenção da Matriz e seus funcionários. Nos acontecimentos fúnebres, jamais cobrou uma moeda sequer da família enlutada. Pessoa que se doava a servir seus semelhantes não poderia ter escolhido melhor ofício senão o do sacerdócio.
O “Corcunda de Notre Dame” estava na Matriz da cidade há vinte e cinco anos, realizou a maioria dos casamentos dos componentes do Grupo dos XV, batizou seus filhos e abençoou suas famílias, então porque ainda era vítima de preconceitos e servia de chalaça por parte da população? Difícil explicar esse comportamento do ser humano, pois veem no sofrimento alheio o linimento para suas próprias dores. Procuram esconder seus medos atrás de máscaras monstruosas julgando, assim, estarem impondo as suas pretensões ambiciosas ou intimidando os seus semelhantes. Mas na verdade, expõe sua fragilidade e covardia para enfrentar a realidade, a própria vida.
Alheio às brincadeiras, o padre acolhia com muito amor a cada um dos que o procuravam, solicitando forças em seus momentos difíceis, clemência por atitudes indevidas ou mesmo confessando particularidades, passando-lhes palavras de fé e alentando seus corações para encontrarem a paz. Por sua tranqüilidade, dedicação, doação do seu amor ao próximo e sempre pronto a atender nos momentos mais difíceis, o padre “Corcunda de Notre Dame” se tornou um símbolo de Aparecida de Branco.
Nos últimos anos tem participado da reunião do Grupo dos XV a convite de seus com- ponentes, porém este ano, a saudade e os fatos que envolveram a vida de alguns membros do Grupo, vieram à tona e resolveram desabafar com o Padre.
Depois de 20 anos de reclusão, Paulo e Gabriel, retornaram a Aparecida de Branco com a finalidade de reverem seus pais e se possível os amigos do Grupo dos XV aos quais queriam pedir perdão e reconstruir suas vidas. Buscando orientação, foram primeiro a Matriz conversar com o Padre que muito receptivo conseguiu ver neles o arrependimento e nos olhos a sinceridade. Junto com eles foram as suas casas e conversaram com os pais, para pedir-lhes paciência e que dessem carinho aos filhos que voltavam totalmente recuperados e prontos para reaverem o tempo perdido de suas vidas.
Com o pouco que juntaram ao longo dos 20 anos, abriram uma loja de tecnologia e manutenção de computadores e, em poucos meses, conseguiram uma grande freguesia porque a qualidade dos serviços era ótima e seus preços convidativos. Assim se reintegraram à sociedade, apesar de nem mais serem reconhecidos, pois a loja levava o nome de “Oliveira e Silva Ltda. , seus sobrenomes respectivamente. Chegando o mês de dezembro o Grupo dos XV marcou sua reunião anual no dia e hora marcada lá estavam: o Padre Corcunda de Notre Dame, Oliveira e Silva. Foi um espanto geral e todos perguntaram ao Padre porque havia levado os donos da loja de informática e Corcunda de Notre Dame os apresentou, este é o Paulo e aquele o Gabriel, portanto pertencentes ao Grupo dos XV, de volta a nossa cidade após cumprirem suas penas pelos crimes cometidos e espero que saibam recebê-los e abrirem os seus corações porque todos temos nossos erros e pecados.
Houve de início um constrangimento, mas a seguir todos se abraçaram levados pela saudade e velhas amizades.
Durante o jantar de confraternização lamentaram muito a ausência de Pedro, o caçula da turma e do qual nunca mais tiveram notícia. Onde estaria ele àquela hora? Perguntavam-se. Já pensou ele aqui, completando nosso Grupo? Exclamou Carlos o líder.
Corcunda de Notre Dame levantou sutilmente a sua batina e mostrou o carimbo dos 15 na sua coxa esquerda. Foi uma choradeira geral, todos se comoveram e a partir daí é que tomaram consciência do quanto Pedro havia sofrido desde a morte de seus pais, queimados junto com a casa em que moravam.

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