sábado, 25 de dezembro de 2010

LAÉRCIO DOS SINOS

Condorcet Aranha


      Com seus oitenta anos de vida Laerson era um dos moradores daquela estreita rua, na pacata cidade de Ferrugem. Conhecido por todos os habitantes, não muitos, aliás, já que ali mesmo havia nascido. Jamais deixou de montar o seu pequeno presépio no galpão que tinha nos fundos de sua residência. Muito religioso, mantinha ali pendurados um grande crucifixo de madeira que ele mesmo havia feito; uma velha bicicleta amassada e um retrato do seu casamento com a falecida esposa Ismênia.
      Sua vida foi comum, como a de tantos outros moradores da cidade, muito trabalhador, confeccionava e recuperava sinos para as igrejas e se orgulhava quando às dezoito horas, eles badalavam ao som da Ave Maria, nos rádios de todas as casas em alto e bom som.
      Tinha a convicção de que os sinos eram: o prenúncio da paz, que traziam da alma e liberavam no mundo o amor puro, sem pretensões. Que o seu badalar ninava nos berços a imagem inocente das crianças e alimentava de esperanças àqueles que, se dispunham a ouvi-lo no dia seguinte.
      Laerson era um sonhador inveterado, tratava dos sinos como seu filho fosse, cobria-lhes de atenção e carinho cuidando com afinco de detalhes que só ele percebia. Os sinos eram o seu confidente, com eles conversava boa parte dos dias e não poucas vezes, dormia no galpão para vigiá-los. Contam os que mais de perto conviveram com Laerson  que, certa vez, ao receber para recuperar um valioso sino da Matriz da Capital, passou uma semana inteira enfurnado no galpão, onde inclusive fazia as suas refeições e dormia. 
      Até hoje, todas as tardes, às dezoito horas Laerson badala seu sino pendurado no galpão e ali ora a sua Ave Maria, diante da foto de casamento, do crucifixo de madeira e da velha bicicleta, um ritual que dura mais de cinquenta anos. São realmente muito fortes as lembranças que lhe chegam e, apesar de sua idade, jamais esmoreceu e vive cada dia com a maior intensidade possível.
      Numa noite de inverno, com muita chuva e vento, por volta das vinte e duas horas, o sino do galpão tocou por várias vezes deixando os vizinhos curiosos. Afinal, por que razão Laerson teria badalado seu sino naquele horário? Estaria corrigindo o timbre do mesmo? Mas nunca testou ou afinou seus sinos à noite para não incomodar a vizinhança! Estaria ele dando sinais de caduquice? Estaria com o sino encobrindo o medo do temporal que caía? Muitas foram as conjeturas daquela noite.
      Ao amanhecer apesar da insistente chuva, tudo estava como sempre na estreita rua daquele bairro de Ferrugem, o dia transcorreu normalmente, porém às dezoito horas o sino do galpão de Laerson não badalou chamando para a Ave Maria. Os vizinhos ficaram apreensivos e foram até a antiga casa onde morava. Bateram palmas no portão, chamaram por seu nome, mas nada de resposta. Prevendo o pior, chamaram a polícia que atendeu prontamente. Arrombaram a porta principal e, finalmente no galpão, encontraram Laerson. Ele não estava abraçado a um sino, nem tão pouco ao retrato de casamento e sim, à velha e amassada bicicleta, porque na vida, temos muitos amores que se perdem pelo tempo, assim como as saudades que arrefecem, porém só um é eterno e não perde a intensidade. Naquela bicicleta velha e amassada pelo caminhão, Laerson revivia a cada dia a sua maior tristeza por ter perdido o filho, mas também revivia todas às vezes que a olhava, seu último sorriso, exibido no dia em que a recebeu de presente.

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O verdadeiro nome deste conto é "Laerson dos Sinos" por equívoco foi divulgado como: "Laércio dos Sinos".
Este conto obteve o primeiro lugar  no 1º Concurso Literário Buriti Cronicontos

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