quarta-feira, 19 de outubro de 2011

ALMA DE CRISTAL


 Condorcet Aranha

Não quero almagamar um puro sentimento,
Nem ser durante a vida um mago presciente,
Mas, não serei omisso, sequer, um só momento,
Porque entendo bem, sem ser inteligente,
Que se cristalizar o meu comportamento,
Eu mostro para o mundo o que sou: só gente.

Portanto o prescindir não é do meu caráter,
Por isso a minha alma vaga sem mistério,
Então, sem ser um clérigo, não quero fráter,
Tão pouco me envaideço por usar critério,
Pois estou certo que não sou célula mater,
Ou mesmo um bom exemplo, apesar de sério.

Assim, como o cristal, a minha alma é pura,
Translúcida e brilhante a refletir a luz,
Em busca de outra vida, se existir, futura,
Aonde há um paraíso que ao amor conduz,
Aos sons inebriantes de uma tessitura,
Imposta pela fé que a prosseguir, induz.

Porém, caso contrário, a ilusão se imponha,
E quebre-se o cristal de minha alma pura,
Sentir-me-ei inseto, pior que uma bironha,
Nadando no estrume da cavalgadura,
Enquanto o peito cheio por tanta vergonha,
Explodirá, por fim, sem permitir sutura. 








sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O DESCOMPASSO



Condorcet Aranha

     Passavam alguns minutos das dez horas daquela manhã de terça-feira. Horário de recreio na Escola de Ensino Básico e Fundamental. As crianças e adolescentes, brincavam e conversavam alegremente. Alguns, sorrateiramente, aprontavam suas estripulias, umas inocentes e outras não.
     Durante este período o responsável pelo portão da escola auxiliava os professores na supervisão comportamental dos alunos. Era um homem de seus quarenta e poucos anos, com cabelos grisalhos; muito educado e respeitado por todos. Seu Zé do Portão, como era carinhosamente chamado, neste dia estava rondando o pátio da escola quando observou um aluno escondendo-se atrás dos carros no estacionamento. Aproximou-se vagarosamente e, para sua surpresa, viu que ele estava, com o auxílio de um compasso, riscando toda a pintura do carro de um dos professores e gritou: “O que você está fazendo aí, moleque?” Assustado o menino saiu em disparada enquanto, com as mãos, tentava esconder seu rosto. Poucos metros adiante ele tropeçou e caiu de cara no chão. Prontamente o seu Zé do Portão correu para socorrer o menino perguntando-lhe se havia machucado. Não obtendo resposta cuidadosamente virou o menino de barriga para cima e apavorou-se ao ver o compasso cravado no olho do menino que permanecia imóvel, desmaiado.
     Olhou em volta e gritou por socorro. Neste momento, Matilde, uma das professoras que ali chegava, correu para ajudar-lhe. Reconheceu o seu aluno, Rogério, e diante da cena foi rapidamente até o seu carro, deu partida e juntamente com o seu Zé do Portão colocou o menino deitado no banco traseiro. Em seguida partiram em disparada para o hospital mais próximo. Lá chegando foram direto para a emergência onde o menino foi prontamente atendido. Enquanto aguardavam notícias sobre o Rogério, telefonaram para a escola para avisar do ocorrido e onde estavam. Quem os atendeu foi a secretária Alice que imediatamente informou à Diretora Lúcia para que tomasse as devidas providências.
      Enquanto os pais do menino eram avisados do ocorrido e se deslocavam para o local, no hospital, o médico de plantão que atendeu Rogério informava à Professora Matilde da necessidade urgente do menino se submeter a uma cirurgia sob o risco de perder totalmente a visão daquele olho. Pois, tendo o compasso atingindo o nervo ótico, este deveria ser recuperado imediatamente, para salvar-se o máximo de visão possível.
      -    Doutor, os pais do menino estão a caminho do hospital. Não podemos esperá-los?
-         Infelizmente não! Cada minuto é crucial para ele.
-         E o que devo fazer?
-         A senhora vai até a portaria faz o registro do menino e preenche o formulário. Preciso também que a senhora me autorize a levá-lo para a sala cirúrgica.
      Entre a cruz e a espada, Matilde teria que decidir naquele momento.
-         Então pode operá-lo Doutor.
-         Está bem, o procedimento cirúrgico levará, aproximadamente, três horas.
-         Aguardarei.
      Enquanto Rogério era levado para a cirurgia, Matilde foi até a portaria para cumprir as               normas do hospital. Enquanto preenchia a ficha de internação ela foi informada que deveria deixar um cheque no valor de três mil reais como caução. Apesar de não ter aquela quantia Matilde, sem outra opção, preencheu e entregou o cheque.
       Duas horas depois chegaram Raul e Célia, pais de Rogério, em verdadeiro desespero, indagando à professora onde estava o menino. Após contar tudo que havia acontecido até aquele momento, Matilde procurou acalmá-los e explicou-lhes que agora só restava pedir a Deus que cuidasse do garoto, pois tudo que poderia ser feito estava sendo efetivado.
       Mais calmo Raul perguntou à esposa:
-         Não temos como levantar três mil reais! E agora?
-         Agora também não sei, o problema é teu. Nosso filho tinha que ser atendido e isto é o que importa no momento.
-         Não é bem assim mulher, temos responsabilidades e deveres com a sociedade.
-         Ah! Você e essa tal de moral! Dá um tempo...
-         Desculpe-nos professora Matilde, não deveríamos nem estar falando sobre o assunto  aqui.
-         Não tem problema Sr. Raul, peço-lhes licença porque preciso chegar ao banco antes do fim do expediente, solicitar um empréstimo e cobrir este cheque. Como professora também ganho pouco. Por favor, quando tiverem notícias do Rogério, comuniquem à Escola.
-         Pode deixar, comunicarei com a diretora. Tchau.
      Depois de ouvir a mãe do menino, Matilde apressou-se em chegar ao banco para resolver o belo problema em que havia se metido, pois entendeu que aquela mulher estava totalmente despreparada para enfrentar aquela situação.
      Tendo conseguido o empréstimo e salvo sua conta bancária a professora voltou para casa. Recebida pela filha e o marido que, com certa ansiedade, foi logo questionando:
-         Porque chegaste tão tarde?
-         Ah! Heitor é uma longa história, depois te conto. Agora preciso tomar um banho e preparar nosso jantar.
      Algum tempo depois, já sentados à mesa e fazendo a refeição, Matilde explicou tudo que ela passou e o desenrolar dos acontecimentos.
-         E como você pagará essa dívida, se teu salário é tão pouco?
-         Olha Heitor, sou professora por vocação e mãe por opção. Acho que naquele momento, fiz o que deveria, daqui para frente vou rezar pela recuperação do Rogério para que não perca toda a visão daquele olho.
-         É, tens razão. Mas certamente o pai do menino te pagará as despesas do hospital.
-         Assim espero. Fiquei muito preocupada com o comportamento da mãe.
No dia seguinte, quando saia para a escola, Matilde percebeu seu carro todo arranhado.
Por ironia do destino, ela tinha sido a vítima das atitudes de vandalismo do Rogério.
      Após quinze dias a Diretora recebeu um telefonema dando conta de que Rogério havia recuperado 30% da visão do olho afetado. Que não mais voltaria à escola porque estavam de mudança para outra cidade. Nunca mais se viu ou ouviu falar do menino ou de seus pais.
      Quarenta anos se passaram e a professora Matilde devido ao glaucoma e idade perdeu quase toda a visão. Foi quando teve certeza de ter feito o que devia para o seu aluno, pois agora experimentava as limitações da visão. Muito debilitada, trazia na lembrança toda a história de sua vida que, como um filme, passava em sua memória, no leito do hospital. Nos seus últimos dias recebeu constantes visitas de um senhor que muito a confortou. Suas palavras meigas, carinhosas e de muita fé, deixaram seu coração ameno e receptivo. Quando ela partiu, Heitor foi saldar suas dívidas com o hospital e funerária, porém foi informado de que todas as despesas haviam sido pagas por um senhor de nome Rogério. Por vezes, atitudes indevidas dos pais, acabam maculando a imagem do filho por toda a vida e, no caso de Rogério, impediu que ele tivesse coragem suficiente para assumir, encarar e desculpar-se com a professora Matilde.