terça-feira, 26 de junho de 2012

ALÉM DA REALIDADE




                                                                       
       Roberto completara 83 anos, era uma linda tarde de verão, terça-feira, dia 5 de janeiro. Filhos, netos e bisnetos, todos reunidos, numa algazarra capaz de atormentar até aos surdos. 
      Rosa, sua esposa, aos 81 anos, na cadeira de rodas, com as mãos, saboreava uma fatia de bolo. Óbvio que muitos farelos escapavam de seus dedos e caiam sobre a saia e o tapete da sala. 
      A farra que todos faziam, própria das pessoas mais jovens e crianças, para Roberto e Rosa pouco importava, porque para eles era apenas uma linda tarde de verão. 
      Prazerosamente, apesar da proibição médica, Roberto oferecia goles de seu refrigerante para Rosa, escondido dos filhos e netos. Ela, docemente sorria para o marido. Aquela alegria, não poderia ser superada por nada de bom que nesse mundo possa existir. Afinal, a vida com seus intermináveis mistérios acaba por se tornar responsável pela maioria das infrações cometidas pela humanidade em busca do seu significado. 
     Roberto tinha consciência do ato infrator, porém a quem deveria atender? Como roubar tanta satisfação de sua amada? 
     Rosa o fitava com seu olhar ofuscado pela doença que impiedosamente lhe roubava até mesmo o direito de falar com o seu conivente parceiro, impedia-a de abraça-lo, devido à paralisia do braço direito e mantinha-a na cadeira de rodas. Com os olhos marejados e o sorriso forçado, Rosa sem palavras, mas com a brandura de um zéfiro ao fim de tarde, com o trêmulo braço esquerdo esgueirou-se entre as limitações impostas pela realidade e, num supremo esforço, com o dedo indicador dissipou as intermitentes lágrimas que, quando em quando, fugiam ao controle dos já fundos, verdes e tristes olhos de Roberto. 
     Jefferson, o filho mais velho, percebe que o pai está oferecendo refrigerante à sua mãe. Aproxima-se, interpela-o com certa veemência, retira-lhe o copo e com o dedo indicador, faz sinal de não para a mãe. Imediatamente, Jefferson retira-se e retorna para as conversas e brincadeiras. 
     Roberto pega seu lenço, limpa delicadamente a boca e o rosto de sua amada, beija-lhe a face e com as mãos alinha os seus brancos cabelos. 
     Marília, uma das netas, pára em frente à cadeira de rodas, olha para a avó e com ar de repulsa diz: “que caca!”, enquanto Rosa, sorrindo, com seu dedo indicador trêmulo tenta alcançá-la para oferecer-lhe mais um carinho, além dos milhares que já tinha lhe proporcionado em seus sete anos de existência. Marília recua rapidamente e sai em disparada. Nos lábios de Rosa, que nada escuta, o sorriso permanece, porém nos fundos olhos de Roberto, novas lágrimas se projetam sobre as rugas de sua face ante a cena que o deixa muito chocado e, novamente o trêmulo dedo indicador de Rosa, que não alcançara a face de Marília, dissipa-lhe as lágrimas carinhosamente. 
     Afinal, estão comemorando o qüinquagésimo aniversário de casamento de Roberto e Rosa, porém os nubentes pouco participam da festa. 
     Duas pequenas velas com os pavios já queimados estão sobre o último e grande pedaço de bolo comprado à última hora em uma padaria qualquer para substituir, pela primeira vez, os grandes e maravilhosos bolos de recheio que Rosa, esbanjando alegria, preparava para receber seus filhos, netos e bisnetos, nesta data. 
     Cenas e mais cenas do passado moíam o coração de Roberto, enquanto, cautelosamente, retirava os farelos de bolo presos à saia de sua amada. Em seu monólogo, já que não era escutado, deixava que as frases escapassem por seus olhos e chegassem aos de Rosa. Então, devidamente decifradas e entendidas, ela pedia com o dedo indicador que ele lhe trouxesse mais refrigerante e bolo, cada vez mais... Prontamente, ele armou um estratagema, dirigiu-se ao Jefferson e disse-lhe que iria dar umas voltas com a cadeira de Rosa no quintal, já que estava calor para que ela se distraísse um pouco. Numa rápida atenção, Jefferson balançou a cabeça em atitude permissiva. 
     No quintal, Rosa e Roberto comiam bolo e tomavam refrigerante à vontade. Ambos davam deliciosas gargalhadas, indiferentes a tremenda sujeira que faziam. 
     Passado algum tempo, Jefferson lembrou-se e foi até o quintal aonde deparou com aquela cena até hilariante. Ficou furioso, repreendeu-os e chamou-os de irresponsáveis. 
     Roberto e Rosa, de mãos dadas, sorriam muito, muito mesmo. Afinal de contas, para eles era apenas uma linda tarde de verão. 
     Ao anoitecer todos foram embora, mas Jefferson, como sempre o último a se retirar, chamou seu pai e disse-lhe: 
     - O senhor também está perdendo o juízo? Já não sabe que mamãe não pode tomar refrigerantes e nem comer muito doce? Parece-me que estás completamente fora da realidade! 
     Com um discreto sorriso, Roberto pôs a mão no ombro do filho e disse-lhe: 
    - Hoje você ainda não entende certas coisas, mas amanhã, provavelmente, compreenderás que tanto eu como tua mãe, de fato estamos fora da realidade, a bem da verdade, já estamos além da realidade. 
     Na manhã seguinte, Rosa e Roberto foram encontrados mortos em seu leito. Na mesa de cabeceira, estavam um prato de papelão com farelos de bolo, as duas pequenas velas, uma garrafa de refrigerante, um pequeno vidro de poderoso veneno e uma folha de caderno, onde se lia: “Agora, além da realidade, existindo ou não alguma coisa depois da vida terrena, não nos será permitido esclarecer tal fato porque, sem a dúvida, o ser humano certamente cometerá muito mais desatinos e maldades. Saibam que eu e sua mãe estamos super felizes, porque somos iguais, pois nada escutamos, vemos ou contestamos. Mas... Pedimos desculpas a vocês, filhos, netos e bisnetos, porque terão que limpar o tapete da sala, o quintal e o nosso quarto. Sabem como é, não? Foi nossa última farra! As duas pequenas velas no bolo trouxeram-nos a certeza do fim. Se a de número cinco encheu-nos de orgulho e saudade por lembrarmos de você Jefferson e seus quatro irmãos, a de número zero deixou-nos bem claro o que restava.” 

quinta-feira, 14 de junho de 2012

EU SEI?




Eu sei! Um dia, terei que deixa-la,
Vencido e com as marcas do tempo,
Querendo em meu colo senta-la,
Imerso em sofrer, dum momento,
Cruel, sem poder nem beija-la.

Eu sei! Não posso esse dia evitar,
Sem forças sequer pra abraça-la,
Querendo uma frase encontrar,
Pedindo perdão e escuta-la,
Dizer-me! Só sei te amar.

Eu sei! É como o final de uma estória,
Em que o enredo acabou,
Não há mais lugar pra vitória,
Eu tenho que ir e, eu vou,
Ficando na sua memória.

Eu sei! Passei toda a vida na busca,
De um dia encontrar numa arte,
Que agora a vista me ofusca,
Fugir dessa mais triste parte,
Que a mente até hoje rebusca.

Eu sei? Se o amor é uma coisa engraçada,
Que o peito da gente domina,
Por toda uma vida passada,
Machuca, judia e fascina...
Eu parto, levando nas mãos o meu nada.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

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sábado, 2 de junho de 2012

CAMBALACHO DE RECORDAÇÕES




Recordações são como transações suspeitas,
Ao vasculharmos as lembranças agradáveis,
Na arca que nos guarda, entre tantas seitas,
Derrotas e fracassos tão desagradáveis,
Que embora, elas nos sejam, as lições perfeitas,
Queremos esquecê-las, como descartáveis.

Porém, no emaranhado que guarda o passado,
Misturam-se as lembranças, dores e alegrias,
Que chegam no presente sem ter avisado,
Trazendo-nos sorrisos, prantos, nostalgias,
Criando-nos momentos, sem nenhum cuidado,
Ferindo, nossa alma, com tais rebeldias.

Então nós questionamos por não ter escolha,
Sofremos sem razão, ou sofre-se a razão?
Na vida, esse mistério, como grande bolha,
Ao  esconder destinos, nos leva à solidão,
No tempo e a permitir, que a própria fé encolha,
Enquanto estoura  a bolha numa escuridão.

Chegamos ao destino que é ígual pra todos,
Aonde nos aguarda, simplesmente, o nada,
Mas, vamos ao partir, levando alguns engodos,
Fugindo da verdade que é o fim da estrada,
Porque as nossas vidas gravam só períodos,
Nos quais deixamos as marcas dessa nossa estada.

Então, ao despedir, as opções são duas,
Envolto em ilusões, partimos com as crenças,
Ou, consciente, vamos com as verdades cruas.
Portanto, se ao final, teremos recompensas,
Por que não são bem claras as mensagens suas?
São provas do existir, ou jugos de sentenças?