quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Dr. WILKER



Condorcet Aranha

       Desde criança, aquele menino sonhava em ser médico. Este sonho teve início aos sete anos, quando assistiu na televisão uma cirurgia de transplante de órgãos, mais precisamente de coração. Impressionado com o que vira, não poucas noites, falava, enquanto dormia, sobre os procedimentos que assistira.
       Preocupados, os seus pais consultaram um psicólogo para se orientarem diante daquela situação. Foram informados que duas coisas poderiam ocorrer, ou em mais alguns dias simplesmente estes sonhos terminariam, ou continuariam seguindo o menino enquanto alguma coisa de maior impacto, não desviasse a sua atenção, porém, nos dois casos teriam pouco a fazer. Que melhor seria não deixar de escutar as histórias que ele contasse nem tão pouco incentivá-lo, deixando-o a vontade com suas conjeturas, porque o tempo e seu amadurecimento colocariam os fatos nos devidos lugares.
       Assim, Wagner e Telma, procederam, dando tempo ao tempo e observando seu menino crescer. Enquanto as folhas do calendário eram tiradas e jogadas ao lixo, Wilker continuava a se realizar nos seus sonhos. Primeiro caçava uma lagartixa no muro do quintal, aprisionava-a num vidro; colocava um pequeno chumaço de algodão embebido em éter e tampava o vidro. Tão logo ela ficasse imóvel, anestesiada, retirava-a do vidro, deitava-a sobre uma taboa revestida de fórmica que dizia ser a mesa cirúrgica e, com metade de uma lâmina Gilette, fazia uma incisão em seu tórax, cautelosamente. A seguir, com o auxílio de uma pinça de ponta fina que ele mesmo manufaturou, segurava um dos pulmões da coitada, enquanto com a lâmina cortava e extirpava o órgão. Rapidamente, pegava uma formiga saúva e fazia com que ela picasse o local cortado do brônquio, a seguir arrancava o seu corpo, deixando a cabeça da formiga vedando o brônquio, pois a formiga depois de picar não solta mais. Então, com um pequeno pedaço de esparadrapo, fechava a incisão que havia feito em seu tórax. Quando a lagartixa se recuperava do torpor e começava a se mexer, com muito carinho ele a levava até o muro do quintal e a soltava. Os olhos de Wilker brilhavam, sua expressão era de vitória, de conquista, de missão cumprida. Mas, por outro lado, havia um comportamento sereno, aparentemente insensível, frio e calculista. Aliás, não lembro de ter visto nenhuma dessas lagartixas posteriormente.
        Wilker crescia, os anos se somavam e a adolescência chegou. Seu comportamento era como de qualquer outro adolescente, jogava bola, tinha muitos amigos, namoradinha, era um aluno exemplar e muito querido entre os professores.
       Só que agora ele não usava lagartixas para realização dos seus sonhos, eram ratos brancos que comprava com sua mesada e deixava-os em gaiolas separadas.
       Nos finais de semana sempre convidava dois ou três colegas da escola, para verem a dissecação de um rato e ensinar-lhes a anatomia do animal que estudara e aprendera em livros científicos. Era realmente uma paixão que o deixava radiante e realizado. Os amigos então, curtiam aquelas aulas que serviam como assunto durante toda a semana na escola.
       Seus pais nem mais pensavam no assunto porque não tinham mais como agir, pois se o filho gostava do que fazia, o melhor era respeitar a sua vontade. – Para desespero dos ratos brancos friamente assassinados.
       Poucos anos depois Wilker saía de casa para prestar o concurso vestibular e ingressar na Faculdade de Medicina. Não por acaso, foi o primeiro classificado. Sua vida universitária caracterizou-se por ser um aluno exemplar, de muitos amigos e, inevitavelmente, querido por todos os professores.
       No dia de sua formatura, além das palavras elogiosas dos professores, foi agraciado com a Medalha de Melhor Aluno do Curso e recebeu de seus colegas, um a um, o abraço de todos. Na primeira fila de cadeiras do auditório, estavam seus pais incontidos em suas alegrias e lágrimas; no céu incontáveis estrelas teimavam em, juntamente com a lua, a clarear os caminhos da vida profissional de Wilker, um início de noite maravilhoso.
       Mais tarde, no salão de baile, os formandos, com seus pares, esbanjavam alegria e exibiam suas aptidões em passos cada vez mais atrativos, ao acompanharem o ritmo da valsa, tendo ao fundo as doze badaladas do grande sino da Matriz emprestando, àquele momento, emoção ainda maior. Porém, as festas terminam e a vida segue seu curso.
      Assim, Wilker já estava fazendo residência e se especializando em cirurgia cardiovascular e transplantes. Sua vida profissional fluía celeremente e logo, suas habilidades e sucessos obtidos, o transformaram no famosíssimo Dr. Wilker. Incansável, realizava cirurgias em vários hospitais de diversos Estados; proferia palestras e cursos em muitos Países; seus feitos e dedicação ilustravam as páginas dos mais importantes jornais e revistas do mundo era um homem tomado pelas funções, não tinha tempo para mais nada, inclusive, ao completar seus 54 anos, sequer lembrou de procurar uma companheira. Era sua sina, perseguir a perfeição, alcançar sucesso em todas as suas empreitadas profissionais, desfrutar do linimento oferecido pela atividade que sempre amou. Este era o Dr. Wilker.
       Certa manhã ele foi avisado que deveria atender a um telefonema urgente e precisava atendê-lo, estava em meio a uma cirurgia, deixou o paciente com seus assistentes e foi atender.   -     Dr. Wilker? / -  Sim! / -  É teu irmão./ -  Diga! Wander./ - Nossos pais faleceram..../ - Como foi isso? / - O pai bateu o carro de frente com um caminhão e morreu na hora. A mãe morreu no hospital de um enfarte fulminante ao saber da morte do pai. O enterro será às 10 horas de amanhã aqui no Cemitério da Saudade. / - Meu Deus! Que tragédia...Termino a cirurgia, pego um avião a vou para aí. -  Está bem, até amanhã Wilker.
       Dr. Wilker desligou o telefone, respirou fundo, ficou absorto por alguns segundos e voltou ao centro cirúrgico para terminar a cirurgia.
       Depois tomou um banho, arrumou-se, informou a enfermeira chefe que estaria ausente por dois dias, solicitou que deixassem seus pacientes preparados para seu retorno e seguiu direto para o aeroporto, onde pegou o primeiro voo para sua terra natal.
       Por volta das 7:00 horas da manhã chegou ao necrotério do Cemitério da Saudade, onde seus pais estavam sendo velados. Aproximou-se das urnas funerárias, colocou cada uma de suas mãos sobre as mãos do pai e da mãe, beijou-lhes as faces e enquanto suas lágrimas escorriam por seu rosto, murmurou: “Pai...Mãe...Quantas vezes eu poderia dar-lhes esse beijo; dizer-lhes o quanto eu os amo; se hoje aqui estou diante vocês por que não fiz isso enquanto vocês me escutariam e sentiriam o sabor de meus beijos; cheguei muito tarde para agradecer-lhes tudo o que fizeram por mim, a paciência com minhas peraltices, aceitar que eu sacrificasse as lagartixas e ratos brancos só para não inibirem meus sonhos, apesar de serem totalmente contra a essa prática. Meu Deus! Como pude ser tão ausente nesses últimos quinze anos, tanto tempo para dizer-lhes o que sentia por vocês e não fui capaz de oferecer-lhes alguns momentos de gratidão.
       Consternado, Dr. Wilker assistiu ao enterro de seus pais e quando saia, abraçado ao seu irmão, tropeçou, foi ao chão e desmaiou. Prontamente socorrido foi levado ao Pronto Socorro do Hospital mais próximo, mas a ausência de um médico cardiologista no momento e a intensidade do enfarto que sofrera, levaram-no ao óbito.
       Dr. Wilker, não voltou para suas atividades, ficou ali mesmo em sua terra natal ao lado de seus pais, desta vez para sempre. Seus pacientes que aguardavam seu retorno, foram submetidos às suas cirurgias com outros médicos e com pleno sucesso. Afinal, onde o Dr.Wilker seria mais importante: operando seus pacientes ou roubando-lhes um pouco de tempo para que pudesse dizer, algumas vezes aos seus pais, o quanto os amava? Esta pergunta acompanhou seu irmão Wander pelo resto dos seus dias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário