quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

PAPAI NOEL É SÓ UM




Condorcet Aranha

       Estávamos nas duas últimas décadas do segundo milênio, já não era tão infantil e muito menos tinha compreensão suficiente para entender determinados fatos e acontecimentos. Era sim, uma criança saudável e como todas, extremamente curiosa e esperançosa em cada dia que amanhecia. A cada sol uma nova descoberta dourada e em cada lua um novo sonho de prata, pois assim é a vida, enquanto não carregamos na alma, as máculas do breu que tomam o interior das cavernas, onde se escondem as transgressões, os pecados e desilusões. 
       É o punhal certeiro do discernimento que, impiedosa e infalivelmente, penetra em nosso coração, perfurando-o e fazendo com que escorra e se perca, inevitavelmente, o verde mar da inocência, dando lugar às intempéries da razão que nos levarão, juntamente com as incertezas, a poluir os rios do futuro, os quais despencarão como fortes cachoeiras do arrependimento.  
       Áttila, acabara de completar seis anos, era um dia 24 de dezembro e, a meia noite, deveria receber a visita de Papai Noel. A ansiedade conduzia o ritmo das batidas de seu coração, dentro do qual nada mais encontraria lugar senão o “Bom Velhinho”.
       Valentina, sua mãe, como tantas outras, fazia com que ele a cada momento, fosse tomado por uma expectativa ainda maior. Lembrando-lhe dos seus pedidos, feitos na “cartinha” que ela havia escrito para ele e enviada ao Papai Noel, aguçava impiedosamente o desejo do menino.
       Naquele dia a vida de Áttila se transformava e, cada hora revestia-se de novidades, com um misto de angústia e vontades. Os doces e bolos, as castanhas, as nozes e nem mesmo toda a ceia, conseguiam ocupar o primeiro lugar no pódio dos seus pensamentos.   
       Especialmente naquele natal, ele queria desvendar alguns mistérios, entre os quais o porque de, em todos os natais, seu pai estar ausente, justo na hora em que o “Bom Velhinho” chegava com os presentes. Ele estava muito atento, tomando conta de cada passo e movimento de sua mãe.
       O relógio da sala badalava onze horas da noite, na próxima, Áttila deveria estar recebendo a visita de Papai Noel. Aquele momento, seu pai não havia chegado em casa. Valentina também estava impaciente e, como sempre, muito linda. Ela acabara de se arrumar e pintar-se. 
       O telefone tocou, ela correu ansiosa para atende-lo. 
       Áttila chegou até à porta da sala e ficou observando. 
       Sua mãe estava com ar de perplexidade, lentamente ela levou o telefone ao gancho. Seus olhos se esmaeceram e deixaram que algumas lágrimas escorressem, levando consigo parte da pintura que acabara de fazer. Seus lábios apertaram-se e em seguida, fizeram um movimento como ao estarem engolindo alguma coisa. 
       Mas Áttila não viu sua mãe mastigar coisa nenhuma! 
       Os instantes seguintes foram de total inércia, silêncio e dúvidas. 
       Valentina aproximou-se do filho, abraçou-o e disse-lhe: 
        - Papai Noel não poderá vir hoje aqui em casa. 
        - Porque mamãe? 
       Depois de pensar por alguns instantes respondeu-lhe: A bem da verdade, ele não virá nunca mais. O avião que trazia seu pai, saiu da rota e há mais de dez dias está perdido e sem fazer contatos. A partir desse natal, teremos que nos contentar um ao outro. 
       Áttila acabava de deslindar o mistério que tanto perseguiu e, ao invés de contente, estava muito triste. 
       Os anos seguintes foram sempre iguais, os natais não tinham mais brilho e nem alegria para aquele menino. 
       Para Valentina era ainda pior. Ela não se arrumava, nem se pintava nessa data. Sua aparência, cabisbaixa e triste, envelhecia rapidamente. Mas inevitavelmente, em todos os dias 24 de dezembro, deixava sobre a cama do filho, à meia noite, algum presente.
       Estávamos no início do terceiro milênio, as torres gêmeas do World Trader Center em New York vieram abaixo, quando dois aviões terroristas lançaram-se contra elas. Foi um impacto mundial, porque a tecnologia contemporânea permitira que o mundo presenciasse a investida do segundo avião terrorista em tempo real, pela televisão. Coisas do progresso. Porém, da mesma forma com que as informações nos chegam tão rápidas, mais facilmente as descartamos em seguida. São como as ondas do mar chocando-se contra as pedras. Quanto maior é a fúria com que chegam, mais espuma fazem e em contrapartida, dissolvem-se com velocidade ainda maior.
       O sentimento humanitário vai dando espaço às coisas materiais e principalmente aos números. Passa-se a viver muito mais em função das vantagens do que das virtudes. Principalmente os que sobrevivem das letras, tentando arruma-las de forma a trazerem a paz, o amor, o respeito, honestidade e dignidade, têm que lutar sem tréguas para que não vejamos sucumbir, irremediavelmente vencida, a fé.
       Áttila tornou-se escritor após concluir seu curso de letras e, desde então, vem buscando compreender as diferentes sociedades, as diversas religiões, os grupos folclóricos, o comportamento e os costumes das diferentes raças, enfim, corrói-lhe o desejo de entender melhor ao homem, esse mequetrefe da natureza.
       Novamente é véspera de natal, já no terceiro milênio, ele está sentado à poltrona, colocada do lado direito da televisão. No lado oposto, no sofá, está sua mãe. Como sempre de olhar triste e conversando com Áttila, em tom de voz baixa e pausada. 
       A campainha toca, faltam vinte minutos para a meia noite. Áttila levanta e dirige-se para a porta. Valentina alerta-o: 
        - Cuidado! Quem pode ser nessa hora?
        - Vou ver! 
     Cautelosamente, ele abre pouco a pouco a porta, o suficiente para certificar-se de quem era. Um senhor de cabelos e barba brancos, diz-lhe “boa noite”, em seguida perguntou por Valentina:
        - Por favor, gostaria de falar com a Dona Valentina. Poderia chamá-la, por gentileza? 
        - Pois não! Áttila respondeu-lhe.  
       Chamou sua mãe que, vagarosamente, dirigiu-se até a porta. Ao ver o senhor ficou atônita e dessa vez, seus olhos brilharam intensamente e deixaram escorrer, não algumas, mas muitas lágrimas sobre a face pálida e sem pintura. 
        Olhou para Áttila e disse-lhe: 
         - Nosso Papai Noel voltou! 
        Ato contínuo ele os abraçou e num reflexo imediato, agradeceu aos céus.
      Entraram na sala, sentaram-se ao sofá e aí, o Papai Noel começou a narrar uma longa estória. Contou-lhes cada detalhe, todos os fatos e acontecimentos, desde o dia em que o avião perdeu-se da rota. Que por falta de combustível foi obrigado a realizar um pouso forçado dentro de uma mata.
       O sol já brilhava, muito mais dourado do que jamais Áttila e Valentina teriam visto. Naquela manhã de 25 de dezembro, nem escutaram as badaladas do relógio.
       Refeitos das emoções do reencontro e mais calmos, Valentina perguntou ao filho se não iria pegar o seu presente, sobre a cama. Pela primeira vez ele houvera esquecido. Pediu desculpas e foi busca-lo. - Uma linda camisa e junto estava um cartão: “Filho, não se deixe esmorecer nessa vida. Acredite naquilo que almejas e tenha certeza de que o Papai Noel, jamais lhe faltará.”
       Áttila voltou para a sala e entre lágrimas abraçou-se à mãe e também ao pai..
     Mário, o pai, pegou em seu bolso um lindo relógio de pulso e passou às mãos do filho. Aquele era o presente que Áttila lhe havia pedido a duas décadas do fim do segundo milênio. Sorriu-lhe, colocou sua mão direita no ombro do filho e, quase num sussurro, disse: 
       - Papai Noel é só um.
             

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