Condorcet Aranha
Passavam
alguns minutos das dez horas daquela manhã de terça-feira. Horário de recreio
na Escola de Ensino Básico e Fundamental. As crianças e adolescentes, brincavam
e conversavam alegremente. Alguns, sorrateiramente, aprontavam suas
estripulias, umas inocentes e outras não.
Durante este período o responsável pelo
portão da escola auxiliava os professores na supervisão comportamental dos
alunos. Era um homem de seus quarenta e poucos anos, com cabelos grisalhos;
muito educado e respeitado por todos. Seu Zé do Portão, como era carinhosamente
chamado, neste dia estava rondando o pátio da escola quando observou um aluno
escondendo-se atrás dos carros no estacionamento. Aproximou-se vagarosamente e,
para sua surpresa, viu que ele estava, com o auxílio de um compasso, riscando
toda a pintura do carro de um dos professores e gritou: “O que você está
fazendo aí, moleque?” Assustado o menino saiu em disparada enquanto, com as
mãos, tentava esconder seu rosto. Poucos metros adiante ele tropeçou e caiu de
cara no chão. Prontamente o seu Zé do Portão correu para socorrer o menino
perguntando-lhe se havia machucado. Não obtendo resposta cuidadosamente virou o
menino de barriga para cima e apavorou-se ao ver o compasso cravado no olho do
menino que permanecia imóvel, desmaiado.
Olhou em volta e gritou por socorro. Neste
momento, Matilde, uma das professoras que ali chegava, correu para ajudar-lhe.
Reconheceu o seu aluno, Rogério, e diante da cena foi rapidamente até o seu
carro, deu partida e juntamente com o seu Zé do Portão colocou o menino deitado
no banco traseiro. Em seguida partiram em disparada para o hospital mais
próximo. Lá chegando foram direto para a emergência onde o menino foi
prontamente atendido. Enquanto aguardavam notícias sobre o Rogério, telefonaram
para a escola para avisar do ocorrido e onde estavam. Quem os atendeu foi a
secretária Alice que imediatamente informou à Diretora Lúcia para que tomasse
as devidas providências.
Enquanto os pais do menino eram avisados
do ocorrido e se deslocavam para o local, no hospital, o médico de plantão que
atendeu Rogério informava à Professora Matilde da necessidade urgente do menino
se submeter a uma cirurgia sob o risco de perder totalmente a visão daquele
olho. Pois, tendo o compasso atingindo o nervo ótico, este deveria ser recuperado
imediatamente, para salvar-se o máximo de visão possível.
-
Doutor, os pais do menino estão a caminho do hospital. Não podemos
esperá-los?
-
Infelizmente não!
Cada minuto é crucial para ele.
-
E o que devo
fazer?
-
A senhora vai até
a portaria faz o registro do menino e preenche o formulário. Preciso também que
a senhora me autorize a levá-lo para a sala cirúrgica.
Entre a cruz e a espada, Matilde teria
que decidir naquele momento.
-
Então pode
operá-lo Doutor.
-
Está bem, o
procedimento cirúrgico levará, aproximadamente, três horas.
-
Aguardarei.
Enquanto Rogério era levado para a
cirurgia, Matilde foi até a portaria para cumprir as normas do hospital. Enquanto
preenchia a ficha de internação ela foi informada que deveria deixar um cheque
no valor de três mil reais como caução. Apesar de não ter aquela quantia
Matilde, sem outra opção, preencheu e entregou o cheque.
Duas horas depois chegaram Raul e Célia,
pais de Rogério, em verdadeiro desespero, indagando à professora onde estava o
menino. Após contar tudo que havia acontecido até aquele momento, Matilde
procurou acalmá-los e explicou-lhes que agora só restava pedir a Deus que
cuidasse do garoto, pois tudo que poderia ser feito estava sendo efetivado.
Mais calmo Raul perguntou à esposa:
-
Não temos como
levantar três mil reais! E agora?
-
Agora também não
sei, o problema é teu. Nosso filho tinha que ser atendido e isto é o que
importa no momento.
-
Não é bem assim
mulher, temos responsabilidades e deveres com a sociedade.
-
Ah! Você e essa
tal de moral! Dá um tempo...
-
Desculpe-nos
professora Matilde, não deveríamos nem estar falando sobre o assunto aqui.
-
Não tem problema
Sr. Raul, peço-lhes licença porque preciso chegar ao banco antes do fim do
expediente, solicitar um empréstimo e cobrir este cheque. Como professora
também ganho pouco. Por favor, quando tiverem notícias do Rogério, comuniquem à
Escola.
-
Pode deixar,
comunicarei com a diretora. Tchau.
Depois de ouvir a mãe do menino, Matilde
apressou-se em chegar ao banco para resolver o belo problema em que havia se
metido, pois entendeu que aquela mulher estava totalmente despreparada para
enfrentar aquela situação.
Tendo conseguido o empréstimo e salvo sua
conta bancária a professora voltou para casa. Recebida pela filha e o marido
que, com certa ansiedade, foi logo questionando:
-
Porque chegaste
tão tarde?
-
Ah! Heitor é uma
longa história, depois te conto. Agora preciso tomar um banho e preparar nosso
jantar.
Algum tempo depois, já sentados à mesa e
fazendo a refeição, Matilde explicou tudo que ela passou e o desenrolar dos
acontecimentos.
-
E como você
pagará essa dívida, se teu salário é tão pouco?
-
Olha Heitor, sou
professora por vocação e mãe por opção. Acho que naquele momento, fiz o que
deveria, daqui para frente vou rezar pela recuperação do Rogério para que não
perca toda a visão daquele olho.
-
É, tens razão.
Mas certamente o pai do menino te pagará as despesas do hospital.
-
Assim espero.
Fiquei muito preocupada com o comportamento da mãe.
No
dia seguinte, quando saia para a escola, Matilde percebeu seu carro todo
arranhado.
Por ironia do destino, ela
tinha sido a vítima das atitudes de vandalismo do Rogério.
Após quinze dias a Diretora recebeu um
telefonema dando conta de que Rogério havia recuperado 30% da visão do olho
afetado. Que não mais voltaria à escola porque estavam de mudança para outra
cidade. Nunca mais se viu ou ouviu falar do menino ou de seus pais.
Quarenta anos se passaram e a professora
Matilde devido ao glaucoma e idade perdeu quase toda a visão. Foi quando teve
certeza de ter feito o que devia para o seu aluno, pois agora experimentava as
limitações da visão. Muito debilitada, trazia na lembrança toda a história de
sua vida que, como um filme, passava em sua memória, no leito do hospital. Nos
seus últimos dias recebeu constantes visitas de um senhor que muito a
confortou. Suas palavras meigas, carinhosas e de muita fé, deixaram seu coração
ameno e receptivo. Quando ela partiu, Heitor foi saldar suas dívidas com o
hospital e funerária, porém foi informado de que todas as despesas haviam sido
pagas por um senhor de nome Rogério. Por vezes, atitudes indevidas dos pais,
acabam maculando a imagem do filho por toda a vida e, no caso de Rogério,
impediu que ele tivesse coragem suficiente para assumir, encarar e desculpar-se
com a professora Matilde.
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