sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O DESCOMPASSO



Condorcet Aranha

     Passavam alguns minutos das dez horas daquela manhã de terça-feira. Horário de recreio na Escola de Ensino Básico e Fundamental. As crianças e adolescentes, brincavam e conversavam alegremente. Alguns, sorrateiramente, aprontavam suas estripulias, umas inocentes e outras não.
     Durante este período o responsável pelo portão da escola auxiliava os professores na supervisão comportamental dos alunos. Era um homem de seus quarenta e poucos anos, com cabelos grisalhos; muito educado e respeitado por todos. Seu Zé do Portão, como era carinhosamente chamado, neste dia estava rondando o pátio da escola quando observou um aluno escondendo-se atrás dos carros no estacionamento. Aproximou-se vagarosamente e, para sua surpresa, viu que ele estava, com o auxílio de um compasso, riscando toda a pintura do carro de um dos professores e gritou: “O que você está fazendo aí, moleque?” Assustado o menino saiu em disparada enquanto, com as mãos, tentava esconder seu rosto. Poucos metros adiante ele tropeçou e caiu de cara no chão. Prontamente o seu Zé do Portão correu para socorrer o menino perguntando-lhe se havia machucado. Não obtendo resposta cuidadosamente virou o menino de barriga para cima e apavorou-se ao ver o compasso cravado no olho do menino que permanecia imóvel, desmaiado.
     Olhou em volta e gritou por socorro. Neste momento, Matilde, uma das professoras que ali chegava, correu para ajudar-lhe. Reconheceu o seu aluno, Rogério, e diante da cena foi rapidamente até o seu carro, deu partida e juntamente com o seu Zé do Portão colocou o menino deitado no banco traseiro. Em seguida partiram em disparada para o hospital mais próximo. Lá chegando foram direto para a emergência onde o menino foi prontamente atendido. Enquanto aguardavam notícias sobre o Rogério, telefonaram para a escola para avisar do ocorrido e onde estavam. Quem os atendeu foi a secretária Alice que imediatamente informou à Diretora Lúcia para que tomasse as devidas providências.
      Enquanto os pais do menino eram avisados do ocorrido e se deslocavam para o local, no hospital, o médico de plantão que atendeu Rogério informava à Professora Matilde da necessidade urgente do menino se submeter a uma cirurgia sob o risco de perder totalmente a visão daquele olho. Pois, tendo o compasso atingindo o nervo ótico, este deveria ser recuperado imediatamente, para salvar-se o máximo de visão possível.
      -    Doutor, os pais do menino estão a caminho do hospital. Não podemos esperá-los?
-         Infelizmente não! Cada minuto é crucial para ele.
-         E o que devo fazer?
-         A senhora vai até a portaria faz o registro do menino e preenche o formulário. Preciso também que a senhora me autorize a levá-lo para a sala cirúrgica.
      Entre a cruz e a espada, Matilde teria que decidir naquele momento.
-         Então pode operá-lo Doutor.
-         Está bem, o procedimento cirúrgico levará, aproximadamente, três horas.
-         Aguardarei.
      Enquanto Rogério era levado para a cirurgia, Matilde foi até a portaria para cumprir as               normas do hospital. Enquanto preenchia a ficha de internação ela foi informada que deveria deixar um cheque no valor de três mil reais como caução. Apesar de não ter aquela quantia Matilde, sem outra opção, preencheu e entregou o cheque.
       Duas horas depois chegaram Raul e Célia, pais de Rogério, em verdadeiro desespero, indagando à professora onde estava o menino. Após contar tudo que havia acontecido até aquele momento, Matilde procurou acalmá-los e explicou-lhes que agora só restava pedir a Deus que cuidasse do garoto, pois tudo que poderia ser feito estava sendo efetivado.
       Mais calmo Raul perguntou à esposa:
-         Não temos como levantar três mil reais! E agora?
-         Agora também não sei, o problema é teu. Nosso filho tinha que ser atendido e isto é o que importa no momento.
-         Não é bem assim mulher, temos responsabilidades e deveres com a sociedade.
-         Ah! Você e essa tal de moral! Dá um tempo...
-         Desculpe-nos professora Matilde, não deveríamos nem estar falando sobre o assunto  aqui.
-         Não tem problema Sr. Raul, peço-lhes licença porque preciso chegar ao banco antes do fim do expediente, solicitar um empréstimo e cobrir este cheque. Como professora também ganho pouco. Por favor, quando tiverem notícias do Rogério, comuniquem à Escola.
-         Pode deixar, comunicarei com a diretora. Tchau.
      Depois de ouvir a mãe do menino, Matilde apressou-se em chegar ao banco para resolver o belo problema em que havia se metido, pois entendeu que aquela mulher estava totalmente despreparada para enfrentar aquela situação.
      Tendo conseguido o empréstimo e salvo sua conta bancária a professora voltou para casa. Recebida pela filha e o marido que, com certa ansiedade, foi logo questionando:
-         Porque chegaste tão tarde?
-         Ah! Heitor é uma longa história, depois te conto. Agora preciso tomar um banho e preparar nosso jantar.
      Algum tempo depois, já sentados à mesa e fazendo a refeição, Matilde explicou tudo que ela passou e o desenrolar dos acontecimentos.
-         E como você pagará essa dívida, se teu salário é tão pouco?
-         Olha Heitor, sou professora por vocação e mãe por opção. Acho que naquele momento, fiz o que deveria, daqui para frente vou rezar pela recuperação do Rogério para que não perca toda a visão daquele olho.
-         É, tens razão. Mas certamente o pai do menino te pagará as despesas do hospital.
-         Assim espero. Fiquei muito preocupada com o comportamento da mãe.
No dia seguinte, quando saia para a escola, Matilde percebeu seu carro todo arranhado.
Por ironia do destino, ela tinha sido a vítima das atitudes de vandalismo do Rogério.
      Após quinze dias a Diretora recebeu um telefonema dando conta de que Rogério havia recuperado 30% da visão do olho afetado. Que não mais voltaria à escola porque estavam de mudança para outra cidade. Nunca mais se viu ou ouviu falar do menino ou de seus pais.
      Quarenta anos se passaram e a professora Matilde devido ao glaucoma e idade perdeu quase toda a visão. Foi quando teve certeza de ter feito o que devia para o seu aluno, pois agora experimentava as limitações da visão. Muito debilitada, trazia na lembrança toda a história de sua vida que, como um filme, passava em sua memória, no leito do hospital. Nos seus últimos dias recebeu constantes visitas de um senhor que muito a confortou. Suas palavras meigas, carinhosas e de muita fé, deixaram seu coração ameno e receptivo. Quando ela partiu, Heitor foi saldar suas dívidas com o hospital e funerária, porém foi informado de que todas as despesas haviam sido pagas por um senhor de nome Rogério. Por vezes, atitudes indevidas dos pais, acabam maculando a imagem do filho por toda a vida e, no caso de Rogério, impediu que ele tivesse coragem suficiente para assumir, encarar e desculpar-se com a professora Matilde.     

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