Apesar de seus oitenta anos e viver
sozinho, jamais alguém viu nos seus olhos ou mesmo na face algum traço de
tristeza. Um exemplo para os seguidores da vida, pois nunca deixou de expor um
sorriso ou abandonou, um dia sequer, o seu violão. Ainda com dedos ágeis, as
melodias eram exemplarmente executadas e acompanhadas por sua rouca e suave
voz.
Ao cair da tarde, debaixo da enorme
figueira-branca, sentado numa velha cadeira, com os dois primeiros botões da
camisa desabotoados para melhor aproveitar os sopros da brisa, expunha parte de
seu peito magro e, com um dos pés, fazia a marcação dos compassos, cantava e
tocava o seu violão. Talvez pelos acordes do seu violão, a figueira ficava
repleta de pássaros que cantavam juntos, como se a natureza os convidasse para comporem
uma orquestra.
Debaixo do surrado chapéu de palha, muitas
vezes coroado por dejetos dos pássaros, dois olhos fundos, um resto de cabelos
brancos e muitas rugas, pareciam acompanhar, assim como o tempo, a cada melodia,
saída daqueles lábios finos e franzidos. As mãos encarquilhadas, uma deslizava
pelo braço do violão formando acordes melodiosos e a outra dedilhava
carinhosamente desde a prima até o bordão. A alegria fazia morada naquele
rosto, cansado sim, mas jamais abatido por lembranças do passado ou frustrado
pelas ilusões futuras. Era a certeza daquele que sabe viver um dia de cada vez,
aonde o presente é o único tempo verbal a ser conjugado.
Quando a noite insensível tentava apagar
aquela linda e harmônica cena, Zé levantava da sua cadeira e se recolhia em sua
modesta morada, enquanto os pássaros saiam em revoada em busca de abrigo para
passarem a noite. Trancava a porta e deixava a janela aberta. Assim, mal
despontava uma nova manhã, lá estavam os pássaros no para-peito da janela do Zé
estourando os pulmões de cantar para que ele levantasse e fosse cuidar de sua
pequena horta de onde tirava parte de seu sustento, como cuidar do galinheiro onde
um galo e seis galinhas caipiras já o aguardavam. Todos ansiosos, sendo que uma
delas era mantida no choco e merecia cuidados especiais para renovar o seu
galinheiro e sua fonte de proteína.
Depois de limpar sua horta, retirando as
folhas atacadas por lagartas e outros parasitas, colhia duas espigas de milho
debulhava-as e com o resto de comida do dia anterior alimentava o galo e as
seis galinhas. Quando fora do ciclo do milho, a goiabeira e as bananeiras
supriam todas as suas necessidades. Um único pé de laranja ocupou o último
espaço do pequeno terreno e onde uma cabra ficava amarrada. Era uma vida
simples, mas saudável, porém como ele comia arroz e feijão todos os dias? Era
uma incógnita, diziam os vizinhos que só entendiam como ele fazia o pão de
milho. Pois, o Zé nunca saiu de sua casa para lugar nenhum, viam-no apenas nas
tardes sem chuva, sentado naquela cadeira tocando o seu violão, enquanto o galo
e as galinhas ciscavam e comiam os matinhos e possíveis minhocas, acompanhados
pelo estardalhaço de centenas de pássaros que se alternavam nos galhos da
figueira-branca.
A
cada pessoa que passava em frente ao seu portão e lhe cumprimentava, ele
respondia com um aceno abaixando a sua cabeça, um ritual repetido muitas vezes,
mas nunca interrompendo a música que executava no velho violão, algumas pessoas
até paravam por alguns minutos, não sabia o Zé se era para escutarem o seu
violão ou a cantoria dos pássaros. Porém para ele, esse fato não fazia a menor
diferença, era uma agradável satisfação.
Anos correram como suas galinhas no
pequeno quintal, alfaces e couves se renovavam, mas o Zé mantinha seus hábitos
e seu repertório, inclusive o velho chapéu de palha que estava cada vez mais
bordado pelos dejetos dos pássaros, a bem da verdade ele nunca o havia limpado.
Suas trocas de roupa não passavam de três camisas e três calças, um par
chinelos e o chapéu de palha. Nunca recebeu visitas, e todos se perguntavam,
qual seria a verdadeira razão daquela vida solitária, não teria filhos ou
parentes?
Algumas pessoas chegaram a chamá-lo no
portão para bater um papinho, mas não ficaram mais que uns poucos minutos
porque o Zé era evasivo em suas respostas. Não deixava escapar nada que pudesse
identificá-lo ou expressar seus sentimentos e certa vez quando um dos vizinhos
tentava tirar alguma verdade do peito do Zé perguntando-lhe se ele vivia apenas
com Deus, prontamente respondeu que não, que vivia sozinho mesmo. Com o tempo
todos entenderam que ele respondia apenas os cumprimentos, nunca
interrogatórios e se adaptaram àquela realidade.
Depois de três dias sem verem o Zé tocando
o violão debaixo da figueira-branca, alguns vizinhos resolveram chamar pelo Zé,
como não respondia, acharam melhor entrar e ver o que estava acontecendo. No
quarto encontraram-no deitado na cama, totalmente coberto de penas de pássaros,
exceto o rosto estampado por um último sorriso. Ao lado da cama estavam dois
montes de grãos: um de arroz e outro de feijões, e no seu bolso uma folha de
caderno dobrada. Curiosos, resolveram ver se havia algum escrito, havia sim,
praticamente a expressão da verdade vivida pelo Zé. Dizia ele: Acredito que
nasci pela vontade, amor e atitude dos meus pais; vivi por minha determinação e
escolhi o que achava melhor para mim; amei e fui amado por quem escolhi e agora
terminou o meu ciclo e parti feliz. Caso contrário partiria triste e culpando
alguém que fechou meus olhos, cegando-me, e também tampou os meus ouvidos deixando-me
surdo. Fiquem com Deus que parto comigo.
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