quinta-feira, 14 de agosto de 2008

A Gardênia de Ícaro

A GARDÊNIA DE ÍCARO


Gardênia não era uma flor, mas uma menina de seis anos de grande beleza, morena na pele, azul no olhar e alva na alma ou era uma flor? Uma santa? Não! Apenas uma das meninas que moravam naquele bairro proletário, aonde também residia um menino franzino, de olhar castanho sonhador e uma alma bastante inquieta. Porém, somava-se às suas características, uma fisionomia esquisita e, porque não dizer, feio de dar dó. Todavia, Ícaro, era o companheiro inseparável de Gardênia e com seus sete anos, aceitava e gostava de todas as brincadeiras que ela inventava. Essa cumplicidade os tornou inseparáveis, conforme os anos passavam, morando no mesmo bairro, estudando na mesma escola, Gardênia e Ícaro estreitavam mais e mais o seu relacionamento.
O tempo não pára, a adolescência chega, a Gardênia desabrocha e o olhar castanho de Ícaro começa a ter outros sonhos, afinal de contas, a sua alma é inquieta, o corpo se desenvolve.
A Gardênia é uma flor que exala magnífico e envolvente perfume ou é uma linda debutante com o céu nos olhos? Será mesmo uma flor? Não! Apenas uma das debutantes que moravam naquele bairro proletário, cuja alma já não era tão branca e aonde também morava o adolescente esquisito e feio de dar dó.
Passados mais alguns anos, aquela cumplicidade acabaria por levá-los ao altar da matriz em que juraram o amor eterno. Eterno? Que não tem fim ou enquanto dure? É terno por ser meigo, afetuoso? Talvez, seja só terno aquele lindo traje que Ícaro vestia durante toda a cerimônia.
Gardênia exibia acima de seu esplendoroso sorriso, as duas águas-marinha que cintilavam num azul sublime que se fazia contrastar com a brancura do seu vestido, véu e a cauda, porém a sua alma já carregava algumas inevitáveis máculas acumuladas dos seus quinze aos vinte anos.
Assim, caprichosamente, duas pessoas conviveram desde a infância e adentravam na vida adulta para assumir as suas responsabilidades, deveres e obrigações.
As folhas do calendário vão sendo amarrotadas e jogadas no lixo, os calendários vão sendo trocados, Gardênia e Ícaro trabalham bastante e dividem as despesas da casa. O relacionamento deles é irreparável, dividem as tarefas, mas o tempo passa, impiedosamente, aquela cumplicidade desde a infância continua, porém algo falta, existe um hiato em suas vidas. Sim, a falta de um filho começa a preocupá-los, pois há cinco anos que estão casados.
Procuram especialistas e recebem a informação de que Gardênia não produzirá novas flores de alma branca, por isso Ícaro não conseguirá formar seu sonhado buquê. Começa uma nova fase na cumplicidade do casal que já não é tão participativa como antes. As diferenças começam a ser observadas por Gardênia, afinal, já não era uma flor desabrochando, estava totalmente aberta e acreditava, madura para a vida. Passa a observar que as suas amigas lhes apresentam seus maridos os quais são homens com porte físico, bonitos de rosto e atraentes. Quando apresenta Ícaro às amigas, nota um certo constrangimento na fisionomia das mesmas. Aí, tendo desfeito o sonho da maternidade, ela inicia uma seqüência de observações sobre detalhes os quais nunca deu atenção, tais como: o de ser sistematicamente cortejada nas ruas e até em seu local de trabalho, aonde, por sinal, também trabalha Carlos, um paquerador irreverente e acostumado a muitas conquistas pelo seu porte físico, beleza e facilidade de diálogo.
Gardênia passa a olhar-se mais, detalhadamente, no espelho e todas as manhãs, após o banho e antes de se arrumar para o serviço, aprecia com muita atenção as suas formas físicas que a natureza generosamente lhe proporcionou. Com as colegas de serviço passa a conversar sobre relacionamentos entre os casais; o que cada uma acha de sua convivência e termina por se envolver com histórias as mais diversificadas. Algumas verdadeiras e muitas mentirosas, casos e mais casos, dos mais simples aos mais absurdos. Aos poucos começa a observar com mais rigor que Ícaro é um homem franzino, pequeno e muito feio, aliás, feio de dar dó. Por que só agora ela estava vendo isso? Foi aí que Gardênia embarcou numa canoa furada, à medida que mais se envolvia no assunto, acreditava ter sido uma cega, apesar daqueles olhos tão lindos que possuía. O azul celestial passou a cintilar com as cores nefastas da insegurança, dúvida e desejos de novas experiências, aguçadas pelos lero-leros das “amigas” de serviço e da vizinhança.
Ícaro continuava o mesmo, participando de cada detalhe de seu relacionamento com Gardênia e das atividades do lar, procurava cada vez mais oferecer a ela momentos de alegria, porque preocupado com a impossibilidade de ter um filho sabia que Gardênia estava, psicologicamente, abalada e esse fato, certamente, seria o responsável pelas mudanças de comportamento do seu amor eterno.
O tempo não pára e outros espaços se abrem, assim, ao que chamamos de destino nada mais é do que um novo posicionamento adotado diante das mesmas situações que, anteriormente, passamos, cercadas por novas circunstâncias. Portanto, Gardênia escolhera uma nova vida, deixou-se levar pela beleza externa, desprezando tudo que os seus lindos olhos azuis não podiam enxergar. Acompanhou as verdades e mentiras de suas “amigas” e aceitou as investidas do Carlos.
O tempo não pára e, a partir daí tornou-se refém dos desejos e vontades daquele que só via em seus olhos azuis uma linda cor ou motivo de atração entre outras que igualmente eram ilusões materiais, como um corpo sem preceitos ou um simples ato biológico de agradável sensação.
Cai sobre Gardênia o peso da infidelidade e da traição. O espelho que todas as manhãs, após o banho e antes de ir para o serviço, mostrava a sua beleza e seus lindos olhos azuis, passa a incriminar-lhe. Percebe que sua fisionomia, dia-a-dia está mais sisuda, seus lábios não mais se abrem em sorrisos, não consegue sequer permanecer mais que uns poucos segundos olhando para si mesma e o seu corpo que tanto reverenciou, é apenas um documento comprobatório dos seus atos inconseqüentes. A angústia torna-se sua maior companheira e frustrada pela repugnante experiência, percebe que a felicidade não estava na beleza de Carlos, mas, ao seu lado, devidamente guardada no coração de Ícaro.
Realmente, todas as flores são lindas e algumas muito perfumadas, porém ao longo do tempo murcham, perdem o perfume e apodrecem, como a própria Gardênia que também foi uma flor ou mulher? Não! Apenas mais uma.
Não resistindo a tantas pressões, Gardênia, certa noite, após o jantar, resolve contar tudo para o seu feio de dar dó. Convida-o para sentarem-se no banco do quintal e diante dos três exemplares de gardênia, plantados logo após o casamento, expõe a Ícaro toda a verdade. Ele escutou-a, pacientemente e sem demonstrar nenhuma reação de ódio ou mesmo surpresa, acariciou os cabelos de Gardênia e disse-lhe:
- Vamos entrar e dormir? O inverno está chegando, olhe os botões das gardênias, já estão por abrir.
Extasiada diante da frieza com que Ícaro a escutou, Gardênia ficou sem ação, levantou-se, juntamente, com ele e foram dormir.
Na manhã seguinte, após o banho e antes de ir para o serviço, Gardênia olhou para o espelho e espantou-se, quando viu um grande ponto de interrogação escrito com seu batom. Arrumou-se, dirigiu-se à cozinha para tomar o café com Ícaro, aliás, como sempre fazia, mas ele não estava lá e sobre a mesa, três gardênias desabrochando faziam companhia para um bilhete que dizia:
- “O ponto de interrogação no espelho é meu último presente para você. Desde ontem à noite, a interrogação que trazia no peito se desfez. A partir de hoje desfrutarei do aroma e beleza das verdadeiras Gardênias, àquelas totalmente alvas, sem máculas, inocentes e verdadeiramente eternas”.

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