Condorcet Aranha
Glenda acabara de se formar em Biologia, ainda não tinha definido a sua área de atuação, aliás, fato muito comum na atual estrutura do ensino superior do País. Na procura por seu primeiro emprego, ainda insegura, encontrou uma oportunidade, como estagiária, na área do ensino fundamental, junto a uma entidade de apoio a adolescentes carentes, num bairro da periferia. Inexperiente, optou por enfrentar a oportunidade, afinal de contas era preciso iniciar suas atividades profissionais, pois necessitava obter seus próprios ganhos para não sobrecarregar a família, ainda mais que, seus quatro anos universitários haviam sido custeados por uma tia, devido à prematura perda do pai. As circunstâncias e o meio em que se vive são responsáveis pelo conhecimento e aprendizado primário.
Assim, iniciava-se a carreira de uma professora meiga, dedicada, responsável e extremamente preocupada em dar de si, o melhor possível, em favor dos seus dois filhos de criação e de outras dezenas de filhos que, por dois anos consecutivos, ficavam sob sua orientação nas aulas de ciências, culinária, desenho, trabalhos manuais, higiene e comportamento social, indispensáveis na formação da responsabilidade, consciência de preservação dos recursos naturais e, principalmente, no respeito com os colegas e demais animais que tanto oferecem para a alimentação e qualidade da vida humana.
Em sua lida diária com esses adolescentes, Glenda enfrentava algumas situações inusitadas em sua vida e, uma das que mais lhe marcou, foi quando das batidas policiais na captura de criminosos e traficantes, invadiam as áreas da periferia e não poucas vezes pondo em risco a segurança e integridade física de pessoas pacíficas e inocentes. Preocupada com a segurança dos adolescentes e, também, para evitar que a curiosidade os fizesse sair de onde estudavam, ou se colocassem nas janelas, rapidamente, as fechava assim como as portas do galpão, gentilmente cedido pela Igreja local para essa finalidade. Desconsiderava o que se passava do lado de fora e, inabalável, continuava a passar seus ensinamentos com a paciência que lhe é peculiar até os dias de hoje.
Adolescentes chegavam e partiam através dos anos, marcados pela pobreza e maus-tratos devidos ao alcoolismo ou outros vícios de seus pais genéticos ou padrastos e madrastas e com cicatrizes terríveis, resultadas de feridas incuráveis provocadas por estupros concretizados em seus próprios barracos, por aqueles que deveriam, em primeira instância, defende-los e protegê-los. Outros, já traziam em seus dedos a marca do tabagismo; no hálito o desagradável odor do alcoolismo e no peito a revolta, em repúdio às freqüentes agressões físicas sofridas. Meninos e meninas despreparados e vulneráveis à saga da criminalidade que neles encontrava os álibis perfeitos para fugirem ao rigor da lei, iniciando-os, prematuramente, no caminho do inferno. Era nesse emaranhado de situações que a Professora buscava suas forças, paci6encia e, acima de tudo, a razão para continuar sua luta, apesar de saber que, na maioria das vezes, sairia derrotada em suas batalhas. Porém, a certeza de que a cada adolescente que conseguisse emergir daquele caos, seria uma nova esperança, incansavelmente, continuava sua trajetória em busca dos novos destinos.
Glenda era obstinada em seus propósitos de vida e, dia-a-dia, chovesse ou fizesse sol, caminhava celeremente para aquele galpão da periferia aonde, pacientemente, escutava as revoltadas palavras daqueles meninos e meninas. Apesar de, em muitos casos, sentir o ardor da ira em seu peito e a vontade de massacrar com suas próprias mãos os agressores de suas crianças, continha-se pela razão e ética de sua profissão, encontrando ainda palavras capazes de amenizarem àqueles momentos angustiosos e, tentava, de alguma forma criativa, orientá-los na busca de uma luz ou novo caminho a trilhar, que pudesse contornar tantos e tantos sofrimentos.
Em cada data comemorativa realizava trabalhos específicos com os seus discípulos, passando-lhes tarefas que pudessem ser efetivadas com materiais recicláveis e sem custos, através dos quais, tivessem contato com outros meninos do bairro e também com seus pais, observando e levantando os problemas mais graves daquela comunidade.
A idéia foi se implantando naquelas pequenas cabeças sofredoras e, num dia comemorativo aos professores, veio a maior surpresa para Glenda. Suas crianças, como ela fazia questão de chamá-los, ao adentrarem no galpão, cantaram parabéns para ela e, cada uma, após beijá-la, entregava-lhe uma pequena lembrança. Naquele dia não houve as tradicionais tarefas e ensinamentos, mas, certamente, aquela tarde foi coroada por uma das maiores lições de vida porque a paz, o amor, o reconhecimento e a gratidão, chegaram de uma só vez, naqueles pequeninos corações amargurados pelas incertezas de suas vidas. Das lembranças recebidas, entre enfeites de geladeira, adesivos para cadernos e outras miudezas, uma em particular chamou a atenção de Glenda. Num pequeno pedaço de papel estava embrulhada uma pulseira feita de canudinhos de papel colorido, colados e presos numa linha preta. Cuidadosa e atenta com suas crianças, ela precisava mostrar a todos a sua satisfação pelas lembranças recebidas e por isso, a partir daquela data, jamais deixou de usar aquela pulseira. O tempo passa vertiginosamente, meses e anos até que, certo dia, ao deixar o banco onde fora receber o seu salário como aposentada, a professora foi raptada e levada para um cativeiro situado na periferia da cidade. Confinada e recebendo parca alimentação, ali ficou, por mais de três semanas, vigiada permanentemente por dois indivíduos mascarados que, constantemente a intimidavam e ameaçavam de morte.
A situação agravou-se após perceberem que haviam seqüestrado a pessoa errada, pois a vítima era apenas uma professora. Portanto, financeiramente, uma quase miserável como eles e a maioria dos assalariados deste País que, apesar de indispensáveis ao desenvolvimento, são relegados pelo governo a planos inferiores; deixados à margem dos serviços de saúde e segurança e ainda, quando aposentados, são desrespeitados pelos preceitos sociais e vilipendiados em seus direitos.
Diante do impasse os seqüestradores resolveram consultar o chefão:
- Chefe! Sequestramos uma pessoa equivocadamente e agora o que faremos?
- Caramba, Ratão! Você só me cria problemas... Quem é o “pacote”?
- É uma professora, respondeu Beiçudo. Queimamos o “arquivo”?
- Não! Vou lá para ver o “pacote”, depois decido o que fazer com ele.
Aproximadamente uma hora depois, no cativeiro, aonde Ratão e Beiçudo aguardavam a chegada do “Chefão”, Glenda ouviu um assovio longo seguido por dois curtos. Era a senha anunciando que o Chefão havia chegado. Beiçudo abriu a porta do cativeiro, ele entrou, dirigiu-se ao pequeno quarto, aonde a professora permanecia amarrada à cadeira, parou diante dela, pegou sua mão e disse:
- Soltem-na da cadeira e tragam uma refeição decente.
- Acho que o Chefão enlouqueceu! Disse Ratão.
- Também me parece, afirmou Beiçudo.
Porém, no mundo do crime, uma ordem do chefe tem que ser cumprida, mesmo quando parece um absurdo porque se a hierarquia for quebrada, fatalmente lavrará a sentença de morte deste infrator.
Enquanto Ratão e Beiçudo foram buscar a refeição, o Chefão retirou o seu o capuz e falou:
- Professora Glenda! Quanto tempo! Que saudades eu tenho daquele galpão... Quase não a reconheci, porém essa pulseirinha de papel que lhe fiz, jamais esqueceria!
- Meu Deus! Você Henrique! Então foste tu que me deu a pulseira?
- Foi Professora, na véspera do dia dos professores, quando pedi dois reais ao meu pai para te comprar alguma coisa, ele, como sempre bêbado, além de me insultar, deu-me um forte bofetão na cara. Sem opção tive a idéia de fazer esta pulseirinha, mas com vergonha, misturei com os outros presentes que lhe deram.
- Pois saiba que, por todos esses anos, eu me perguntava quem de vocês teria sido o autor de tamanha demonstração de carinho, humildade e respeito... O valor das coisas não está no material que as compõem e sim no sentimento com que a oferenda é dada. Na verdade você me surpreendeu porque, das crianças de seu grupo, àquela época, sempre foste o mais arredio e revoltado.
- Era e ainda sou Professora... Veja no que deu... Hoje sou o “Chefão”, um bandido e criminoso, procurado pela polícia de todo o país e temido até pelos demais bandidos. Também, depois da infância, seviciado pelos meninos maiores; agredido diariamente por um pai bêbado e drogado e sem o carinho de uma mãe, totalmente omissa e subjugada pelo medo, como poderia ser moldada a minha personalidade?
- Mas porque enveredou pelas trilhas obscuras da criminalidade? Você esteve tão perto do caminho do bem quando me presenteou com esta pulseira de papel! Naquele momento você teve nas mãos as rédeas de um destino sério e honesto, pois no seu coração, estavam os sentimentos de paz, amor, gratidão e reconhecimento.
- Eu sei Professora. Mas, naquele mesmo dia, ao chegar em casa, presenciei a morte de minha mãe, esfaqueada pelo meu próprio pai. Por isso, nunca mais retornei às suas aulas, não foi de vergonha pelo presente que havia lhe dado e sim por uma enorme revolta que até hoje carrego no peito. É como se eu tivesse um braço a mais e sem conseguir arrancá-lo.
Nesse instante, um dos vigias do cativeiro chega ofegante e diz:
- Sujou, Chefão....A polícia está subindo o morro e vem direto para cá.
- Diga para todos fugirem pela saída 3, vamos embora. Adeus professora Glenda, reze por mim.
Depois de haver dado um beijo de despedida na Professora, enquanto empreendiam a fuga, o Chefão falou para o Beiçudo:
- Volte lá e elimine o “pacote”.
- Sem hesitar, Beiçudo retornou rapidamente e quando adentrava ao cativeiro, foi surpreendido pelos policiais e, na troca de tiros, com cinco balas no peito, Beiçudo caiu e despediu-se da vida ali mesmo.
Resgatada, a Professora bastante abatida pelos maus tratos, foi levada até a delegacia onde prestou seu depoimento, acompanhada por um médico. Suas informações foram suficientes para que a polícia, em pouco tempo, chegasse a todos os integrantes da quadrilha, inclusive ao Henrique.
Presos, julgados e condenados pelos vários seqüestros e crimes que haviam realizado, teriam que passar o resto de suas vidas atrás das grades.
Depois de recuperada física e psicologicamente, a Professora foi até o presídio para ver o Chefão ou Henrique, como ela fazia questão de chamá-lo.
- Olá Henrique, como está se sentindo?
- Péssimo, o que a senhora acha?
- Acho que, com o tempo, esse isolamento fará você raciocinar melhor sobre tudo que passou e aí, certamente começará a reencontrar o verdadeiro sentido da vida. Por isso eu estou aqui hoje, só para te devolver essa simples pulseira de papel. Pois, vivi todos esses anos acreditando que ela fosse alguma coisa maior, tivesse algum significado sentimental e construtivo. Mas não! É e sempre foi apenas uma pulseirinha de papel colorido.
- Não, Professora! Quando lhe dei esta pulseira, ela representava todo um sentimento puro que eu tinha pela senhora...
- Eu sei Henrique, porém, todo esse sentimento, há muito tempo atrás havia sumido e agora, como a fumaça, sequer deixou vestígios, no instante em que você ordenou ao Beiçudo: Volte lá e elimine o “pacote”.